Escola Secundária da Matola |
Por Soraia Amaro
Li, há pouco tempo, uma
compilação de textos sobre racismo e colonialismo num website de um projecto
jornalístico português. Um projecto de 2016 que só agora conheci. Comecei, por
razões óbvias, pela página dedicada a Moçambique. Muita coisa interessante
sobre como um passado colonial continua a condicionar as relações sociais e de
poder, muitas opiniões distintas, numa abordagem mais de “dar voz” do que de
analisar, mas sempre válida.
Trabalho de perto com o sector
da Educação, nos seus vários graus de ensino, e talvez por isso mesmo uma
passagem destas entrevistas ficou-me na cabeça.
Uma das entrevistadas dizia:
“No
meu antigo local de trabalho, pedi demissão sabendo que queria agarrar outra
oportunidade. E o chefe disse: ‘Sabes que é muito difícil para nós encontrar
quadros moçambicanos de qualidade como tu.’ Para ele, aquilo era um elogio. Mas
eu senti-me ofendida porque na cabeça dele não existem moçambicanos com capacidade.”
Uma jovem que, como a autora do
texto indica, "faz parte de uma geração de moçambicanos que estudou fora e
viajou", mostra-se ofendida por um empregador lhe dizer que é muito difícil
encontrar quadros moçambicanos de qualidade.
É provável que os grupos onde
se move sejam constituídos por jovens que tiveram acesso a oportunidades
semelhantes, de formação no exterior, de experimentar outros mercados de
trabalho e ver outras realidades. E talvez por isso esta entrevistada se
esqueça, por momentos, que essa não é a maioria.
Vivemos num país que conta,
após o arranque lectivo de 2018, cerca de sete milhões de alunos no Sistema de
Ensino. Sete milhões. E a maioria destes sete milhões não tem acesso a este
tipo de oportunidade que, pasmem-se, custa dinheiro.
A maioria dos jovens tem acesso
a um sistema educativo muito frágil onde, em alguns distritos, até o acesso ao
livro escolar é um luxo. A maioria dos jovens passa 12 anos num sistema
educativo com professores mal remunerados e extremamente desmotivados, que se
desdobram entre o público e o privado para conseguir ter um salário melhor. A
maioria dos jovens divide a sua carteira com mais dois colegas, quando a escola
tem carteiras. A maioria dos jovens assiste a aulas meramente descritivas,
copia a matéria do quadro e nunca realizou uma actividade experimental.
Podemos continuar: a maioria
dos jovens desaparece do sistema educativo na passagem para o Ensino
Secundário. Os que persistem, tendem a aglomerar-se nas escolas das capitais de
província, que podem chegar a ter sete ou oito mil alunos. Nestas mesmas
escolas, as suas turmas podem ter 60 ou mais alunos, e os professores vão
correr para dar toda a matéria que têm para dar, que não foi ajustada aos
tempos lectivos quando estes tiveram de emagrecer para encaixar novas
disciplinas. E sim, é possível que um aluno complete a 12ª classe sem saber ler
e escrever correctamente.
Continuemos: a maioria dos
jovens que terminar o Ensino Secundário não vai ingressar na universidade. Os
que entrarem, vão ficar a patinar durante vários anos até concluírem o curso.
Moçambique tem 50 universidades, entre públicas e privadas, e a média de anos
para completar um curso universitário é de o dobro mais dois. Isto significa
que um aluno leva até 10 anos para concluir o seu curso. A taxa de graduação é
de 7% por ano, de acordo com os dados do Ministério da Ciência e Tecnologia,
Ensino Superior e Tecnico Profissional. Ou seja, em cada 100 alunos que se
inscrevem, 7 graduam-se a cada ano. Porquê? Quando um aluno chega ao Ensino
Superior, ele já é o resultado de 12 anos de formação num sistema extremamente
débil, e terá grandes dificuldades em acompanhar um curso superior complexo.
Mas continuemos: Temos, assim,
universidades “cheias” de alunos que demorarão uma média de 10 anos a ingressar
no mercado de trabalho. E temos outra realidade ainda: dezenas de universidades
a ministrar cursos de “papel e lápis”. A formação em Ciências e Engenharias é
uma minoria porque custa muito dinheiro: porque os laboratórios são caros,
porque o equipamento é caro, porque as saídas de campo são caras e apenas as
universidades públicas investem nisso, dentro das suas possibilidades. É
perfeitamente possível que um Geólogo, por exemplo, termine o seu curso
superior sem ter feito uma única saída de campo ou ter visto as rochas de que
fala fora da vitrine da faculdade.
Por isso, sim, é difícil
encontrar quadros moçambicanos com qualidade. E isso não tem, obviamente, a ver
com a capacidade dos moçambicanos, como a entrevistada parece ter entendido,
mas sim com a qualidade do ensino e das oportunidades de formação a que têm
acesso.
E não sou eu quem o diz. A
Ordem dos Advogados, por exemplo, aponta um défice de cerca de 2 mil
profissionais. Os exames para a Ordem dos Médicos resultam num número absurdo
de chumbos.
Nas empresas, o recrutamento é
extremamente difícil – e também não sou eu quem o diz. Um exemplo? “A
disponibilidade de mão-de-obra qualificada é exígua. Estamos longe de um
equilíbrio entre oferta e procura” - Eduardo Madope, gestor de Recursos Humanos
da Petromoc. “Os nossos licenciados, maioritariamente Engenheiros Químicos e
Mecânicos, demostram pouca habilidade prática. Por exemplo, precisámos de três
engenheiros… todos tiveram de fazer estágios em Maputo, Beira e Nacala. Destes,
apenas dois ficaram, já que o terceiro não conseguiu estar à altura do que era
requerido” - Lampião Bila, chefe da Divisão de Administração de Pessoal da
Petromoc.
Então, é importante sairmos da
nossa bolha de privilégio para compreender que um jovem que tem a oportunidade
fazer formação noutros países e de experimentar outros mercados de trabalho,
que tem acesso a um sistema de ensino menos débil e melhor alicerçado em
professores mais bem reconhecidos e motivados, que tem acesso a escolas com
bibliotecas recheadas e Wifi gratuito, que estuda em universidades com
laboratórios bem equipados e docentes qualificados para os usar não pode ser a
bitola pela qual se mede a qualidade dos graduados moçambicanos. Porque essa
continua a ser uma minoria que ainda não chega para dar resposta às
necessidades dos sectores público e privado do país. E, uma vez mais, não
falamos de capacidade. Falamos de oportunidade.
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Capacity X Opportunity
I recently went through a compilation of texts on racism and colonialism
on the website of a Portuguese journalistic project. A 2016 project that I just
met. I started, for obvious reasons, with the page dedicated to Mozambique. A
lot of interesting views on how a colonial past continues to condition social
and power relations, many different opinions. The approach is more a
"giving voice" one, rather than analyzing, but always valid.
I work closely with the education sector, in its various degrees, and
perhaps for this reason a passage of these interviews has been buzzing on my
mind.
One of the interviewees said:
"In my previous workplace, I resigned to take another opportunity. And the chief said: 'You know that it is very difficult for us to find well qualified Mozambicans like you.' For him, that was a compliment. But I was offended because in his mind there are no Mozambicans with capacity. "
"In my previous workplace, I resigned to take another opportunity. And the chief said: 'You know that it is very difficult for us to find well qualified Mozambicans like you.' For him, that was a compliment. But I was offended because in his mind there are no Mozambicans with capacity. "
A young woman who, as the author indicates, is part of a generation of
Mozambicans who studied abroad and traveled, is offended by an employer who
tells her that it is very difficult to find well qualified Mozambican workers.
It is likely that the groups in which she moves are made up of young
people who have had access to similar opportunities, studding abroad, experiencing
other labor markets and seeing other realities. And maybe that's why this
interviewee might forget, at times, that this is not the majority.
We live in a country that counts, at 2018 school start, nearly seven
million students in the Education System. Seven millions. And most of these
seven million do not have access to this kind of opportunity, which, imagine…
costs money.
The majority of young people have access to a very fragile educational
system where, in some districts, even access to the school book is a luxury.
Most young people spend 12 years in an education system with poorly paid and
extremely unmotivated teachers, who run between the public and the private
sector in order to earn a better salary. Most young people share their table
with two other colleagues - when the school has tables. The majority of the
young people attend classes merely descriptive, copy the explanations from the
board and never performed an experimental activity.
We can continue: most young people vanish from the education system in
the transition to Secondary School. Those who persist, tend to be concentrated
in the biggest schools in the capital cities of provinces, which may have seven
or eight thousand students. In these same schools, their classes may have 60 or
more students, and the teachers will run fast to give all the information they
have to give, as curricula has not been adjusted to the class hours, when they
had to lose space in order to fit in new disciplines. And yes, it is possible
for a student to complete 12th grade without being able to read and write
correctly.
But let's continue: most young people who finish high school will not be
admitted to university. Those who enter, will be there for several years until
they complete the course. Mozambique has 50 universities, between public and
private, and the average number of years to complete a university degree is twice
plus two. This means that a student takes up to 10 years to complete their
course. The graduation rate is 7% per year, according to the data from the
Ministry of Science and Technology, Higher Education and TVET. That is, for
every 100 students who enroll, 7 graduate each year. Why? When a student
arrives at Higher Education, he is already the result of 12 years of training
in an extremely weak system, and will have major difficulties with keeping up
with a complex course.
But we can continue: We have, therefore, universities “full” of students
that will take an average of 10 years to join the labor market. And we have yet
another reality: dozens of universities teaching "paper and pencil"
courses. Education in science and engineering is a minority because it costs a
lot of money: because laboratories are expensive, because equipment is
expensive, because field trips are expensive and only public universities
invest in it, within their possibilities. It is perfectly possible for a
Geologist, for example, to finish his degree without having made a single field
trip or seen the rocks he learned about out of the college window.
So, yes, it is difficult to find well qualified Mozambican workers. And
this has obviously nothing to do with the capacity of Mozambicans, as the
interviewee seems to have understood, but rather with the quality of education
and training opportunities to which they have access.
But it’s not me who says it. The Bar Association, for example, mentions
a deficit of about 2,000 lawyers. Examinations for the Medical Order result in
an absurd number of fails. In business, recruiting is extremely difficult - and
I'm not the one who says it either. An example? "The availability of
skilled labor is exiguous. We are far from a balance between supply and demand
"- Eduardo Madope, manager of Human Resources at Petromoc. "Our
graduates, mostly Chemical and Mechanical Engineers, show little practical
skills. For example, we needed three engineers ... all had to do internships in
Maputo, Beira and Nacala. Of these, only two remained, since the third one
could not live up to what was required "- Lampião Bila, head of the
Personnel Management Division of Petromoc.
So, it is important for us to get out of our bubble of privilege to
understand that a young person who has the opportunity to train in other
countries and to experience other labor markets, who has access to a stronger
and better education system based on better recognized and motivated teachers, who
has access to schools with well-filled libraries and free Wi-Fi, who has studied
in universities with well-equipped laboratories and qualified teachers to use
them, can not be the scale to measure the quality of Mozambican graduates.
Because those remain a minority, that is not enough to fulfill the needs of the
public and private sectors of the country. And once again, we are not talking
about Mozambicans capacity. We are talking about opportunity.
A visão da realidade produz um forte e inesperado impacto.
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