segunda-feira, 19 de março de 2018

Capacidade X Oportunidade





Escola Secundária da Matola

Por Soraia Amaro



Li, há pouco tempo, uma compilação de textos sobre racismo e colonialismo num website de um projecto jornalístico português. Um projecto de 2016 que só agora conheci. Comecei, por razões óbvias, pela página dedicada a Moçambique. Muita coisa interessante sobre como um passado colonial continua a condicionar as relações sociais e de poder, muitas opiniões distintas, numa abordagem mais de “dar voz” do que de analisar, mas sempre válida.

Trabalho de perto com o sector da Educação, nos seus vários graus de ensino, e talvez por isso mesmo uma passagem destas entrevistas ficou-me na cabeça.

Uma das entrevistadas dizia: 
No meu antigo local de trabalho, pedi demissão sabendo que queria agarrar outra oportunidade. E o chefe disse: ‘Sabes que é muito difícil para nós encontrar quadros moçambicanos de qualidade como tu.’ Para ele, aquilo era um elogio. Mas eu senti-me ofendida porque na cabeça dele não existem moçambicanos com capacidade.”

Uma jovem que, como a autora do texto indica, "faz parte de uma geração de moçambicanos que estudou fora e viajou", mostra-se ofendida por um empregador lhe dizer que é muito difícil encontrar quadros moçambicanos de qualidade.
É provável que os grupos onde se move sejam constituídos por jovens que tiveram acesso a oportunidades semelhantes, de formação no exterior, de experimentar outros mercados de trabalho e ver outras realidades. E talvez por isso esta entrevistada se esqueça, por momentos, que essa não é a maioria.

Vivemos num país que conta, após o arranque lectivo de 2018, cerca de sete milhões de alunos no Sistema de Ensino. Sete milhões. E a maioria destes sete milhões não tem acesso a este tipo de oportunidade que, pasmem-se, custa dinheiro.

A maioria dos jovens tem acesso a um sistema educativo muito frágil onde, em alguns distritos, até o acesso ao livro escolar é um luxo. A maioria dos jovens passa 12 anos num sistema educativo com professores mal remunerados e extremamente desmotivados, que se desdobram entre o público e o privado para conseguir ter um salário melhor. A maioria dos jovens divide a sua carteira com mais dois colegas, quando a escola tem carteiras. A maioria dos jovens assiste a aulas meramente descritivas, copia a matéria do quadro e nunca realizou uma actividade experimental.

Podemos continuar: a maioria dos jovens desaparece do sistema educativo na passagem para o Ensino Secundário. Os que persistem, tendem a aglomerar-se nas escolas das capitais de província, que podem chegar a ter sete ou oito mil alunos. Nestas mesmas escolas, as suas turmas podem ter 60 ou mais alunos, e os professores vão correr para dar toda a matéria que têm para dar, que não foi ajustada aos tempos lectivos quando estes tiveram de emagrecer para encaixar novas disciplinas. E sim, é possível que um aluno complete a 12ª classe sem saber ler e escrever correctamente.

Continuemos: a maioria dos jovens que terminar o Ensino Secundário não vai ingressar na universidade. Os que entrarem, vão ficar a patinar durante vários anos até concluírem o curso. Moçambique tem 50 universidades, entre públicas e privadas, e a média de anos para completar um curso universitário é de o dobro mais dois. Isto significa que um aluno leva até 10 anos para concluir o seu curso. A taxa de graduação é de 7% por ano, de acordo com os dados do Ministério da Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Tecnico Profissional. Ou seja, em cada 100 alunos que se inscrevem, 7 graduam-se a cada ano. Porquê? Quando um aluno chega ao Ensino Superior, ele já é o resultado de 12 anos de formação num sistema extremamente débil, e terá grandes dificuldades em acompanhar um curso superior complexo.

Mas continuemos: Temos, assim, universidades “cheias” de alunos que demorarão uma média de 10 anos a ingressar no mercado de trabalho. E temos outra realidade ainda: dezenas de universidades a ministrar cursos de “papel e lápis”. A formação em Ciências e Engenharias é uma minoria porque custa muito dinheiro: porque os laboratórios são caros, porque o equipamento é caro, porque as saídas de campo são caras e apenas as universidades públicas investem nisso, dentro das suas possibilidades. É perfeitamente possível que um Geólogo, por exemplo, termine o seu curso superior sem ter feito uma única saída de campo ou ter visto as rochas de que fala fora da vitrine da faculdade.

Por isso, sim, é difícil encontrar quadros moçambicanos com qualidade. E isso não tem, obviamente, a ver com a capacidade dos moçambicanos, como a entrevistada parece ter entendido, mas sim com a qualidade do ensino e das oportunidades de formação a que têm acesso.

E não sou eu quem o diz. A Ordem dos Advogados, por exemplo, aponta um défice de cerca de 2 mil profissionais. Os exames para a Ordem dos Médicos resultam num número absurdo de chumbos.
Nas empresas, o recrutamento é extremamente difícil – e também não sou eu quem o diz. Um exemplo? “A disponibilidade de mão-de-obra qualificada é exígua. Estamos longe de um equilíbrio entre oferta e procura” - Eduardo Madope, gestor de Recursos Humanos da Petromoc. “Os nossos licenciados, maioritariamente Engenheiros Químicos e Mecânicos, demostram pouca habilidade prática. Por exemplo, precisámos de três engenheiros… todos tiveram de fazer estágios em Maputo, Beira e Nacala. Destes, apenas dois ficaram, já que o terceiro não conseguiu estar à altura do que era requerido” - Lampião Bila, chefe da Divisão de Administração de Pessoal da Petromoc.

Então, é importante sairmos da nossa bolha de privilégio para compreender que um jovem que tem a oportunidade fazer formação noutros países e de experimentar outros mercados de trabalho, que tem acesso a um sistema de ensino menos débil e melhor alicerçado em professores mais bem reconhecidos e motivados, que tem acesso a escolas com bibliotecas recheadas e Wifi gratuito, que estuda em universidades com laboratórios bem equipados e docentes qualificados para os usar não pode ser a bitola pela qual se mede a qualidade dos graduados moçambicanos. Porque essa continua a ser uma minoria que ainda não chega para dar resposta às necessidades dos sectores público e privado do país. E, uma vez mais, não falamos de capacidade. Falamos de oportunidade.

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Capacity X Opportunity

I recently went through a compilation of texts on racism and colonialism on the website of a Portuguese journalistic project. A 2016 project that I just met. I started, for obvious reasons, with the page dedicated to Mozambique. A lot of interesting views on how a colonial past continues to condition social and power relations, many different opinions. The approach is more a "giving voice" one, rather than analyzing, but always valid.

I work closely with the education sector, in its various degrees, and perhaps for this reason a passage of these interviews has been buzzing on my mind.

One of the interviewees said:
"In my previous workplace, I resigned to take another opportunity. And the chief said: 'You know that it is very difficult for us to find well qualified Mozambicans like you.' For him, that was a compliment. But I was offended because in his mind there are no Mozambicans with capacity. "

A young woman who, as the author indicates, is part of a generation of Mozambicans who studied abroad and traveled, is offended by an employer who tells her that it is very difficult to find well qualified Mozambican workers.
It is likely that the groups in which she moves are made up of young people who have had access to similar opportunities, studding abroad, experiencing other labor markets and seeing other realities. And maybe that's why this interviewee might forget, at times, that this is not the majority.

We live in a country that counts, at 2018 school start, nearly seven million students in the Education System. Seven millions. And most of these seven million do not have access to this kind of opportunity, which, imagine… costs money.

The majority of young people have access to a very fragile educational system where, in some districts, even access to the school book is a luxury. Most young people spend 12 years in an education system with poorly paid and extremely unmotivated teachers, who run between the public and the private sector in order to earn a better salary. Most young people share their table with two other colleagues - when the school has tables. The majority of the young people attend classes merely descriptive, copy the explanations from the board and never performed an experimental activity.

We can continue: most young people vanish from the education system in the transition to Secondary School. Those who persist, tend to be concentrated in the biggest schools in the capital cities of provinces, which may have seven or eight thousand students. In these same schools, their classes may have 60 or more students, and the teachers will run fast to give all the information they have to give, as curricula has not been adjusted to the class hours, when they had to lose space in order to fit in new disciplines. And yes, it is possible for a student to complete 12th grade without being able to read and write correctly.

But let's continue: most young people who finish high school will not be admitted to university. Those who enter, will be there for several years until they complete the course. Mozambique has 50 universities, between public and private, and the average number of years to complete a university degree is twice plus two. This means that a student takes up to 10 years to complete their course. The graduation rate is 7% per year, according to the data from the Ministry of Science and Technology, Higher Education and TVET. That is, for every 100 students who enroll, 7 graduate each year. Why? When a student arrives at Higher Education, he is already the result of 12 years of training in an extremely weak system, and will have major difficulties with keeping up with a complex course.

But we can continue: We have, therefore, universities “full” of students that will take an average of 10 years to join the labor market. And we have yet another reality: dozens of universities teaching "paper and pencil" courses. Education in science and engineering is a minority because it costs a lot of money: because laboratories are expensive, because equipment is expensive, because field trips are expensive and only public universities invest in it, within their possibilities. It is perfectly possible for a Geologist, for example, to finish his degree without having made a single field trip or seen the rocks he learned about out of the college window.

So, yes, it is difficult to find well qualified Mozambican workers. And this has obviously nothing to do with the capacity of Mozambicans, as the interviewee seems to have understood, but rather with the quality of education and training opportunities to which they have access.

But it’s not me who says it. The Bar Association, for example, mentions a deficit of about 2,000 lawyers. Examinations for the Medical Order result in an absurd number of fails. In business, recruiting is extremely difficult - and I'm not the one who says it either. An example? "The availability of skilled labor is exiguous. We are far from a balance between supply and demand "- Eduardo Madope, manager of Human Resources at Petromoc. "Our graduates, mostly Chemical and Mechanical Engineers, show little practical skills. For example, we needed three engineers ... all had to do internships in Maputo, Beira and Nacala. Of these, only two remained, since the third one could not live up to what was required "- Lampião Bila, head of the Personnel Management Division of Petromoc.


So, it is important for us to get out of our bubble of privilege to understand that a young person who has the opportunity to train in other countries and to experience other labor markets, who has access to a stronger and better education system based on better recognized and motivated teachers, who has access to schools with well-filled libraries and free Wi-Fi, who has studied in universities with well-equipped laboratories and qualified teachers to use them, can not be the scale to measure the quality of Mozambican graduates. Because those remain a minority, that is not enough to fulfill the needs of the public and private sectors of the country. And once again, we are not talking about Mozambicans capacity. We are talking about opportunity.

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